Da Finlândia ao Real Madrid: as “revoltas” mais insólitas das equipas B

IlvesBvsIlves(Momento do jogo entre as duas formações do Ilves: a equipa principal, vestida de verde, acabou afastada da Taça da Finlândia pela própria equipa B!)

Tendo em conta a realidade portuguesa, a ideia de equipas B a competir nas mesmas provas que as próprias equipas principais é algo absolutamente surreal e quase impensável. A verdade é que há de facto vários registos de situações semelhantes ao longo da História e a mais recente aconteceu há apenas cinco dias, elevando mesmo a fasquia no que toca ao grau de insólito da questão: a formação secundária do Ilves eliminou… a sua equipa principal na quarta ronda da Taça da Finlândia, numa das situações mais inusitadas de que há memória mesmo tendo em conta os episódios que aqui lhe contaremos a envolver equipas B nas mesmas competições das equipas principais.

Neste caso, de resto, para se ter uma noção de como se deu este incrível desfecho é preciso ver o resumo do encontro e, acima de tudo, o golo que garantiu o 2-1 final ao Ilves B: pressionado pelo avançado “contrário”, o central Leo Kyllonen atrasou a bola para o seu guarda-redes ainda perto da zona do meio-campo… mas Eetu Huuhtanen falhou a recepção e permitiu que a mesma se encaminhasse para a baliza deserta – ainda fez um sprint para a tentar interceptar com os pés, mas já só o conseguiu após esta ultrapassar a linha de golo. Outro ingrediente para adensar ainda mais este enredo cómico-trágico: o lance sucedeu ao minuto 90…+5!

Um cenário absolutamente incrível, é verdade, pois a maioria dos países não permite que um clube tenha mais que uma equipa a participar na Taça, mesmo que a formação secundária compita em escalões profissionais. Há, no entanto, excepções, como este caso finlandês bem ilustra, repetindo o que havia acontecido em 1970/71 na então ainda denominada Checoslováquia, com a equipa secundária do Sparta de Praga a bater a principal nos quartos-de-final (acabaria por cair na fase seguinte). Mais recentemente, na época 2016/17, também se defrontaram nos 16-avos-de-final da Taça da Roménia as equipas principal e B do Dínamo de Bucareste, sendo que aí foi a formação teoricamente favorita que de facto venceu, mesmo a jogar “fora de casa” (e curiosamente também por 2-1).

Em 92/93, a equipa B do Hertha de Berlim conseguiria mesmo chegar à final da Taça da Alemanha, no que é ainda hoje um dos mais incríveis registos de uma situação deste género. Então no terceiro escalão do futebol germânico, a formação secundária do emblema da capital alemã entrou em prova na segunda eliminatória, batendo os amadores do Heidelberg-Kirchheim por claros 3-0; seguiram-se duas equipas do segundo escalão – o VFB Leipzig (que nessa época até viria a subir à Bundesliga), derrotado por 4-2, e o Hannover 96, por 4-3. Nos quartos-de-final surgiu pela frente a primeira equipa da principal liga germânica, o Nuremberga, e também essa viria a cair frente ao Hertha B, perdendo por 2-1 – o mesmo resultado com que o emblema de Berlim venceria o secundário Chemnitzer nas meias-finais –, enquanto que no jogo decisivo acabaria por ser derrotada pelo Bayer Leverkusen (0-1, golo do lendário Ulf Kirsten), no que foi até hoje a única Taça conquistada pelos Farmacêuticos… que curiosamente tinham batido a equipa principal do Hertha nos oitavos-de-final pelo mesmo resultado). Esta foi a segunda de três participações da equipa B do Hertha na prova, sendo que actualmente na Alemanha este cenário já não é permitido.

RealMadridvsCastilla(A “foto da praxe” que antecedeu a final da Copa do Rey em 1980 entre Real Madrid e Real Madrid Castilla: a turma principal dos merengues não foi em facilitismos e goleou por 6-1.)

Em Espanha deixou de o ser em 1991, e o caso mais mediático de equipas B a chegar (muito) longe na Taça do seu país, todavia, será mesmo aquele protagonizado pelo Castilla, a formação secundária do Real Madrid, na temporada 1979/80, quando chegou à final da Copa do Rei, tendo como adversário… a equipa principal do Real Madrid. O percurso do Castilla tem ainda mais mérito se se considerar que teve de superar oito eliminatórias a duas mãos, recuperando de resultados negativos na primeira mão em 3 delas: de 4-1 para 4-0 com o Hércules nos 16-avos-de-final; de 2-1 para 2-0 com a Real Sociedad (que na altura liderava o campeonato, vindo a terminar em segundo, apenas um ponto atrás do campeão… Real Madrid, que não lhes conseguiu ganhar em toda a temporada) nos quartos-de-final; e de 2-0 para 4-1 nas meias-finais diante do Gijón, terceiro classificado da I Liga espanhola nessa edição.

Um percurso inacreditável para uma equipa com média de idades a rondar os 20 anos, que terminaria em sétimo no segundo escalão a que só terá faltado a “sorte” de encontrar outro adversário no jogo decisivo. O Real Madrid “a sério” jogou mesmo… a sério e não deu quaisquer hipóteses à sua equipa secundária, vencendo por claros 6-1 com todas as estrelas a render o que delas se esperava: Juanito bisou, Santillana e um tal de Vicente Del Bosque também facturaram e em campo havia ainda homens como Camacho (o mesmo José Antonio que noutra vida levaria o Benfica à conquista da sua primeira Taça de Portugal em 9 anos), Uli Stielike (que se sagraria campeão da Europa com a Alemanha Federal nesse mesmo verão) ou o internacional britânico Laurie Cunningham, exótica contratação dos Merengues para essa temporada, com o sérvio Vujadin Boskov a comandar as operações a partir do banco.

LeverkusenHerthaB9293(Na final da Taça da Alemanha 92/93, o Leverkusen “só” venceu por 1-0 a formação secundária do Hertha Berlim, que, de forma surpreendente e categórica, chegou ao derradeiro jogo da prova.)

O Castilla não tinha destaques de nenhum tipo ao lado destes nomes: do 11 inicial, só o guarda-redes Agustín, o médio Ricardo Gallego e o avançado Francisco Pineda viriam a fazer algumas épocas na equipa principal do Real Madrid (o segundo seria também internacional espanhol em 42 ocasiões), com uma nota também para o capitão Javier Castañeda, que logo na época seguinte se mudou para o Osasuna e é ainda hoje o recordista de jogos do clube na I Liga (350). O momento de glória da formação secundária dos Merengues (apenas a terceira equipa do segundo escalão a chegar à final até então) acabaria por surgir ao minuto 80, quando o médio Ricardo Álvarez reduziu a desvantagem para 4-1, e nem os dois golos que se seguiram dos AA afectaram o ambiente – ficou para a História a imagem das duas equipas a celebrar juntas após o apito final perante 65 mil adeptos, lotação máxima permitida para a decisão (durante a caminhada do Castilla o Santiago Bernabéu chegou a receber 100 mil pessoas eufóricas com a prestação dos jovens Merengues).

Na verdade, a grande festa dos adeptos do Real Madrid já tinha acontecido nas meias-finais, tanto pelo incrível apuramento do Castilla como pela qualificação da própria equipa principal, conseguida no desempate por grandes penalidades ante o arqui-rival Atlético. O feito da equipa secundária foi ainda mais celebrado pelo facto de, ao chegar à final da Copa do Rei, garantir desde logo a presença na Taça das Taças (a equipa principal foi à Taça dos Campeões Europeus por ter conquistado o campeonato), tornando-se a primeira (e única) equipa B de sempre a disputar as competições europeias. A experiência foi breve mas, de forma surpreendente (ou talvez não), muito intensa: o Castilla venceu em Madrid por 3-1 o West Ham, com direito a reviravolta, acabando por perder pelo mesmo resultado no tempo regulamentar em Inglaterra; seguiram-se depois mais dois golos para os Hammers que ditaram a eliminação logo na primeira ronda da segunda competição continental da UEFA à data.

CASTILLA1(Após a final da Taça de Espanha de 1980, realizada em pleno Santiago Bernabeu, os jogadores das duas equipas madridistas juntaram-se para a fotografia com o troféu.)

Lembra-se de, no início do texto, se ter qualificado situações deste género como impensáveis no futebol português? Bem… talvez nem tanto: é verdade que num patamar diferente, mas ainda na época passada aconteceu um caso semelhante na Taça do Algarve, envolvendo duas equipas associadas ao Farense. Fundada em 2019/20, a Associação Farense 1910, que funcionava como satélite dos Leões de Faro, chegou aos quartos-de-final da Taça distrital logo na primeira temporada de existência, com a competição a ser interrompida de forma abrupta devido ao surgimento da pandemia do coronavírus; essa situação espoletou, entre muitos outros constrangimentos, a que não se tenha realizado campeonato de juniores em 2020/21, e por esse motivo o Farense inscreveu uma equipa B na II Divisão Distrital para dar competição aos seus jogadores dessa faixa etária… mas manteve a Associação Farense 1910 activa, no caso na I Distrital.

A possibilidade de um encontro entre ambas na Taça do Algarve já havia sido levantada nos bastidores em tom de brincadeira, mas das conjecturas à realidade vai habitualmente alguma distância. Neste caso não foi: logo na primeira eliminatória da competição, o sorteio ditou um encontro entre Farense B e Farense 1910, disputado na casa… de ambos (Estádio Municipal da Penha). A partida foi muito disputada e só se conheceu o vencedor no desempate por grandes penalidades depois do 2-2 registado no tempo regulamentar, com o satélite a superiorizar-se aos bês nos pontapés finais.

farense1910(O plantel do Farense 1910 que em 20/21 defrontou a equipa B do Farense na Taça Distrital da AF Algarve.)

Curiosamente esse seria o último jogo de sempre do Farense 1910 na competição, que também foi interrompida em 2020/21 devido ao aumento de casos de coronavírus na região: a associação não se inscreveu para as competições na época em vigor, com o grosso dos atletas a sair para outros clubes da região e um punhado dos tidos como mais promissores a passar para a recém-criada equipa de sub-23 (que passou a ser treinada precisamente pelo ex-treinador do Farense 1910, o mítico Fanã, entretanto regressado ao cargo depois de um período como interino na formação principal na II Liga). Já a equipa B mantém-se em actividade, tendo sido despromovida à II Divisão Distrital do Algarve após terminar a época como lanterna-vermelha do principal escalão (ainda faltam duas jornadas, tendo somado apenas 10 pontos nas 24 já disputadas). O ponto alto na temporada acabou por ser mesmo a participação na Taça do Algarve, na qual logo na primeira eliminatória afastou o maior rival, o Olhanense (a equipa principal, que competiu até à última pela subida à Liga 3), vencendo por 3-2; conseguiria depois superar o Almancilense no desempate por grandes penalidades (1-1 no tempo regulamentar), caindo nas meias-finais diante do vizinho 11 Esperanças (0-3).

*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.