Fabián O’Neill: o Best uruguaio teve o mesmo fim do original

oneilljuventus(A Juventus foi o principal clube que Fabián O’Neill representou, mas a experiência em Turim ficou longe de ser positiva para o uruguaio.)

É por demais conhecida, por entre os verdadeiros fãs de futebol, a história de vida de George Best, o “Quinto Beatle”, unanimemente considerado o melhor jogador norte-irlandês de sempre e uma das maiores figuras da História do Manchester United, que nunca levou a carreira de futebolista verdadeiramente a sério e que, por consequência do estilo de vida errático e despreocupado, acabaria por falecer aos 59 anos vítima de insuficiência renal. O que poucos recordariam até há um par de dias era o uruguaio, menos famoso mas, dizem (entre eles, um tal de Zinedine Zidane), talvez igualmente talentoso, que infelizmente teve o mesmo fim, e 10 anos mais novo: Fabián O’Neill.

O’Neill, apelido proveniente do avô… irlandês, começou a dar nas vistas no Nacional de Montevideu, sagrando-se campeão nacional logo aos 18 anos, na primeira época no futebol sénior. Médio de apuradíssima craveira técnica, que lhe valeu a alcunha de “El Mago”, rumou à Serie A a meio da temporada 95/96, numa altura em que o campeonato italiano era indiscutivelmente o melhor do mundo, e depressa se estabeleceu como figura do Cagliari, que representaria durante 5 épocas – na última das quais fez uma jogada que ficou célebre até hoje, na qual efectuou três túneis (ou cuecas) a… Gattuso, que então alinhava na Salernitana.

oneilluruguai(Pela principal Seleção Uruguaia, o médio fez somente 19 internacionalizações.) 

Ao todo, foram 136 partidas e 16 golos pelo clube da Sardenha, onde chegou a capitão e se tornou ídolo – estatuto que mantém ainda hoje, apesar de mais tarde ter reconhecido que chegou a participar em esquemas de resultados combinados “mas nunca para a equipa perder”, salientou. “O meu melhor momento foi no Cagliari. Apesar da tristeza quando descemos, eu parava na praia e os adeptos chamavam-me ‘bêbado’. No ano seguinte, quando subimos, esses mesmos adeptos pagavam-me bebidas!”, contava há poucos anos.

Os belíssimos desempenhos, apesar da descida de divisão dos Rossoblú no fim de 99/00, proporcionaram a ida para a Juventus nesse verão, onde integraria um plantel recheado de estrelas – a maior das quais um concorrente directo para a sua posição, então já com estatuto de campeão mundial e europeu chamado Zinedine Zidane. O mesmo que mais tarde diria que o futebolista com mais talento com quem jogou na sua carreira foi… Fabián O’Neill. Foram, de resto, colegas apenas nessa temporada, e nem ganharam qualquer troféu juntos – o médio uruguaio seria campeão italiano, sim, mas só na época seguinte, na qual Zidane já se encontrava no Real Madrid, e fruto de apenas 4 aparições na primeira metade da temporada, antes de sair para o Perugia.

No fim da época regressou ao Cagliari, que ainda se encontrava no segundo escalão do futebol transalpino, mas nem sequer chegou a jogar, voltando em Janeiro de 2003 para o Nacional. Apenas 9 jogos e 2 golos depois, deixou o clube e refugiou-se numa fazenda em Paso de los Toros, povoação a 250 quilómetros de Montevideo. Ainda nem sequer tinha 30 anos completados por essa altura – e pouco mais de um ano antes, por exemplo, havia estado com a selecção nacional no Mundial da Coreia do Sul e do Japão, ainda que não tenha sido utilizado, devido a lesão. Somou apenas 19 internacionalizações (e 2 golos), disputando a Copa América em 1993 – a sua primeira internacionalização A, de resto, surgiu nessa competição; antes, no Mundial de sub-20 em 1993, tinha feito 4 jogos e 2 golos… ambos frente a Portugal, numa vitória uruguaia por 2-1 na fase de grupos.

oneillnacional(Foi no Nacional de Montevideu que O’Neill iniciou e terminou a carreira.)

Isto foi uma breve descrição da sua carreira; se atentarmos ao período prévio, porém, talvez se consiga perceber melhor o pós. Criado por uma avó, com a qual partilhou cama até aos 14 anos, já trabalhava aos 9, vendendo salsichas à porta de um… bordel. A dependência do álcool começou por essa altura e nunca mais o abandonou, apesar das inúmeras tentativas de reabilitação; as várias tentativas de negócios deram todas para o torto, o vício do jogo e os casos mais ou menos fugazes com mulheres mais ou menos interessadas nele (e na sua conta bancária) levaram o resto.

“Cavalos lentos, mulheres rápidas e apostas: não ficou nada. Cheguei a ter 14 milhões de dólares na conta; hoje não tenho nada, nem o contador da luz em casa”, contava em 2017 ao jornal uruguaio “Ovación”, explicando passar os seus dias no bar La Nueva Lata e na banca de frutas que ficava ao lado, a beber o seu whisky e a ajudar os donos dos estabelecimentos quando necessário. “Não quero que me façam trabalhar muito, eu não gosto muito de trabalhar. Gostaria de descobrir jogadores, conheço gente em todos os países, mas não é fácil de me recomendarem. Gostaria de trabalhar com isso e nada mais. Não quero ser comentador na televisão, nada de fato e gravata. Eu gosto de andar assim, de chinelos. Quando era capitão do Cagliari, às vezes tinha de colocar roupa social por obrigação. Sabia ser capitão, sei ter responsabilidades. A vida fez-me assim, rebelde e orgulhoso”, dizia então.

oneillcagliari(O’Neill teve duas passagens pelo Cagliari e destacou-se no emblema da Sardenha.)

Por essa altura, Fabián O’Neill vivia com a sogra, a esposa e o filho Favio (tinha mais duas filhas de casamentos anteriores), e dizia-se mais feliz sem nada do que nos tempos de conta bancária gorda. Já tinha voltado a ter um relance da vida boa quando em 2013 viu publicada a sua biografia, intitulada “Hasta la última gota” – na qual se conta, entre muitas outras histórias do género, a rábula do dia em que, numa manhã após noite inteira em claro a beber, foi a um leilão de gado e comprou 1104 vacas por 250 mil dólares… O livro foi um sucesso de vendas no Uruguai – e até mesmo Zidane chegou a ser fotografado a segurar um exemplar –, mas não fez grande coisa à vida do antigo futebolista, que em Junho de 2016 teve de ser operado à vesícula biliar.

Na altura, os médicos alertaram-no para ficar três anos sem beber álcool; não aguentou mais de um mês. “Agora não me dói nada. Por fora pareço um carro para vender, que não se sabe se tem motor ou bateria”, dizia entre risos, garantindo preferir este estilo de vida ao do glamour dos tempos de jogador. “Não me incomoda ser pobre, não me custa. Tendo dinheiro para beber e que meus filhos estejam bem, está bom. Que meus filhos tenham saúde é uma fortuna para mim. Depois, se como arroz com ovo, está bom. Quando era jogador apostava mais, porque tinha mais dinheiro. Agora não posso, não tenho nada”, apontava nessa mesma entrevista.

zidanelivro(Zinedine Zidane foi um dos mais ilustres futebolistas que adquiriu o livro do ex-colega.)

E completava: “Os amigos do passado hoje não existem. Sou feliz igual, porque há gente nova, que está comigo quando não tenho nada. Hoje paro aqui no bar com um grupo e ajudamo-nos uns aos outros. Às vezes tenho mil pesos, às vezes eles têm. E o senhor do posto dá-me para que leve comida para casa. É melhor estar assim que ter dinheiro. Tive muito dinheiro e milhões de amigos. Hoje só tenho 10 ou 12, boémios como eu, mas são os que me ajudam. Quero continuar assim, não quero estar do lado dos ricos. Nunca quis, o rico era eu. Por sorte, ficaram alguns princípios. Pouquinhos, mas ficaram. Em Paso de los Toros, ficaram alguns princípios. Gente que vê que eu estou mal e me estende a mão”.

Em Dezembro de 2020, o jornal “El Pais” dava conta de “um novo Fabián O’Neill”, revelando que o antigo médio já não bebia álcool há seis meses, depois de (mais) um susto a nível de saúde: uma cirrose. “Desta vez vi a coisa feia. Estive perto de morrer, os neurónios estavam a queimar-se”, admitia então, revelando que os médicos lhe pediram para ficar sóbrio durante um ano, de modo a poder candidatar-se a um transplante de fígado e assim poder sonhar com uma vida longa e saudável. Por essa altura tinha arranjado o seu trabalho de sonho: captação de talentos para o grupo Casal, detido pelo afamado empresário uruguaio Paco Casal, que o acompanhou durante toda a carreira.

oneill-1405x1732-e1672004529176-758x490(Uma imagem que não precisa de qualquer tipo de legenda…)

A redenção acabou por chegar tarde, infelizmente. Na passada sexta-feira, véspera de Natal, Fabián O’Neill foi internado no hospital com quadro hepático grave; no dia seguinte, dia de Natal, seria declarado o seu falecimento. Tinha 49 anos completados em Outubro. “Orgulhosos de ter podido admirar de perto o teu génio: puro, cristalino, como os diamantes mais preciosos. Fizeste-nos enamorar-nos da tua classe, Cagliari nunca deixou de amar o seu Mago com a 10 nas costas. Descansa em paz, Fabián. Para sempre um de nós”, podia ler-se na mensagem publicada nas redes sociais pelo emblema da Sardenha, sendo que também o Nacional e a Juventus recordaram o antigo jogador, bem como antigos colegas e amigos – entre os quais Luis Aguiar, médio que passou por Portugal (FC Porto, Estrela da Amadora, Académica, Braga e Sporting) e que reservou palavras bem duras para com muita gente do seu país: “Perdemos o MELHOR JOGADOR DE TODOS!! Não me venham com grandes figuras. Foi e será eternamente o jogador mais completo de todos os tempos, não existe nenhum como ele na história do futebol uruguaio e jamais haverá. Deste de comer a todo um povo e riram-se tanto de ti. Roubaram-te tudo, saquearam-te e chamaram-te bêbado toda a vida. Fabián querido, descansa em paz que agora de certeza que esta cambada de fdp que há no Uruguai já não terá sobre o que falar. Oxalá não chorem todos os nojentos que te pediam trabalho e comida e gozaram contigo durante anos.”

“Que estejas em paz, papá. Já há algum tempo que tinhas perdido a chispa, a alegria e a tua essência única. Cada vez te via mais triste, mais doente, com os olhinhos perdidos, o olhar caído, o teu físico que sempre foi tão forte cada vez mais débil e deteriorado. Doeu-me escutar-te algumas vezes dizer ‘Não quero viver mais’ nas tuas poucas horas de sobriedade. O mais importante: juro-te que te perdoo, papá. Orgulha-me o quão querido e amado és por toda a gente. Vamos recordar sempre a tua bondade e generosidade, a humildade que te saía dos poros, o teu desapego ao dinheiro, a tua luz e o teu talento. Amo-te para sempre e agora sei que não é só até à morte, como me dizias, mas muito mais”, escreveu a filha Marina nas redes sociais.

oneillperugia(O’Neill teve uma curta passagem pelo Perugia em 2002.)

“Perguntavam-me: ‘E bebias quando estavas na Juventus?’ E eu respondia: ‘Se bebo pobre, não ia beber quando tinha dinheiro?” E foi isso que aconteceu: bebendo, saindo à noite, começaram as lesões. O treino era às 9:30, o Nedved acordava às 5:30, ia correr, chegava às 7:30, a mulher à espera dele com o pequeno-almoço feito, comia, tomava banho e ia treinar. Quando ele saía de casa para ir correr, estava eu a deitar-me. Por mais que estivesse a 200 por cento, nunca iria chegar ao nível dele.” A descrição é feita pelo próprio Fabián O’Neill e não podia espelhar melhor a sua vida.

*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.

Magallanes: da II Divisão à Libertadores

magallanes(A festa dos jogadores do Magallanes após a conquista da Taça do Chile no passado domingo.)

É mais uma daquelas histórias que faz delirar os adeptos mais apaixonados por futebol, e conquista aqueles mais céticos, que já não acreditam nos “contos de fadas” que o “desporto rei” ainda vai proporciando a cada temporada que passa.
Neste caso, viajamos até à América do Sul, mais concretamente até ao Chile, de onde nos chega mais um belíssimo exemplo de que no futebol tudo é possível, até mesmo estar na II Divisão, vencer a Taça e garantir o apuramento para a… Copa Libertadores!
Isso mesmo: afastado do principal escalão chileno desde 1986, ou seja, há trinta e seis anos, o Magallanes terminou recentemente com o “jejum” ao sagrar-se Campeão da Primera B, e como se isso não fosse suficiente, ainda cometeu a proeza de conquistar a Taça, derrotando na final a Unión Espãnola, num duelo que valia também a última vaga chilena na Libertadores da próximo época.
Fundado em 1897, o Club Deportivo Magallanes é um dos emblemas mais tradicionais do Chile, deu até origem ao aparecimento do Colo-Colo em 1925, e teve o seu período mais áureo na década de 30, quando foi Tri-Campeão, acabando depois por oscilar durante vários anos entre a primeira e a segunda divisões, até que em 1986 se despediu do topo até agora.
Este ano, os “albicelestes”, que têm como principal figura Luís Jiménez, ex-jogador de Fiorentina, Lázio, Inter, Parma ou West Ham, venceram vinte e dois dos trinta e dois jogos que realizaram na Liga – mais seis empates e quatro derrotas -, e foram Campeões com quatro pontos de avanço sobre o Cobreloa, garantindo assim o regresso ao maior campeonato do seu País após quase quatro décadas de ausência.
E enquanto ia alimentando o sonho da subida, o clube sediado na capital Santiago do Chile foi avançando na Taça até chegar ao jogo decisivo, deixando pelo caminho o modesto San Bernardo Unido; os igualmente secundários Universidad de Concepción e Cobreloa; e os primodivisionários Everton e Huachiphato; encontrando na final, realizada este domingo, outro adversário da I Liga, o Unión Espãnola, que conseguiu derrotar nos penaltis (7-6) após empate a duas bolas no final da partida.
Mais do que ganhar a Copa pela primeira vez na história, o Magallanes, já se disse, ficou com uma das vagas chilenas na Libertadores, porém, a presença na edição de 2023 não será a estreia do clube na prova: em 1985, os azuis e brancos ficaram no Grupo D a par do seu grande rival Colo-Colo e dos uruguaios Peñarol e Bella Vista, e não foram além do terceiro lugar com duas vitórias e um empate em seis jogos.
Passar da II Divisão para a Copa Libertadores em poucas semanas parece um objetivo irrealista, mas o Club Deportivo Magallanes provou que no futebol não há mesmo impossíveis.