(Martín Palermo é um ídolo eterno do Boca Juniors e é o melhor marcador da história do clube.)
O dia 4 de Julho de 1999 ficou para a História da Copa América, em primeira instância, mas também de todo o futebol mundial, na verdade, e devido a vários factores. Naquele fim de tarde no Estádio Feliciano Cáceres, em Luque, Paraguai, houve por exemplo um vermelho directo para Javier Zanetti, uma raridade ao longo da carreira do lendário lateral-direito argentino; mas houve também cinco penaltys assinalados, dos quais apenas… um foi convertido, e neste particular um nome ficaria marcado para sempre – até porque ainda hoje continua a deter esse nada feliz recorde no livro do Guinness: Martín Palermo, o homem que falhou três grandes penalidades no mesmo jogo.
Cinco minutos, primeira chance: após mão na bola por parte de Alexander Viveros, lateral-esquerdo colombiano que quatro mais anos mais tarde seria contratado pelo Boavista, “El Loco“ Palermo (sim, a alcunha tinha razão de ser, como se vai perceber facilmente) partiu para a marca dos 11 metros pela primeira vez. Por essa altura já somava dois golos na prova, ambos apontados no triunfo por 3-1 sobre o Equador na primeira jornada da fase de grupos. Viria a marcar mais um… mas não nesse dia.
(Foi no Estudiantes de La Plata que o ponta de lança se formou e estreou no futebol profissional.)
Primeira chance, dizíamos antes… primeiro falhanço. A bomba enviada pelo pé esquerdo do goleador natural de La Plata foi direitinha ao centro… da trave da baliza à guarda de Miguel Calero. Aos 76 minutos chegaria a segunda, numa altura em que a Colômbia vencia por 1-0, com golo… de penalty logo ao minuto 10 (e outro seria falhado aos 48): cabeceamento de Palermo, mão na bola… de Viveros. “El Loco”, com a sua poupa loira, avança mais uma vez para bater… e mais uma vez atira um míssil à trave colombiana, com a bola a voar para outro planeta após o embate estrondoso, a que se seguiu a imagem do puxão dos calções para cima com as duas mãos que se tornou icónica.
Minuto 90, Argentina já a perder por 3-0 mas nunca rendida, Palermo supera a oposição do capitão Bermúdez (o tal ex-Benfica) e vai ao chão na área colombiana após contacto muito (mesmo muito) subtil com Iván Córdoba. Terceira chance. “El Loco” agarra a bola de imediato, respira fundo, tira as mãos das ancas, parte para o remate e atira para a sua direita, com o guardião Miguel Calero a adivinhar e a defender para canto. Pouco depois, o apito final perante o olhar incrédulo do goleador platense. “O Bielsa [seleccionador] disse-me que eu fui egoísta. Eu disse-lhe que ninguém queria bater ou ninguém me disse para não bater. Ninguém veio apanhar a bola para marcar o terceiro penalty. Estava prestes a rebentar nesse momento, a minha concentração era quase zero. Senti-me como um cão abandonado. Foi uma experiência ruim que tive naquela Copa América. Lembro-me sempre dessa situação, é algo que não desejo a nenhum jogador”, disse já várias vezes depois disso.
(O célebre momento em que Palermo puxou os calções após falhar a segunda de três grandes penalidades que desperdiçou diante da Colômbia.)
Como é fácil de perceber, não se ganha a alcunha de “El Loco” apenas por uma situação como esta (que nem é de todo responsabilidade unicamente sua, obviamente). Por essa altura, aos 25 anos, Palermo era um dos grandes (provavelmente o maior) avançados argentinos ainda a jogar no seu país, totalizando 56 golos em 75 jogos pelo Boca Juniors, onde tinha chegado no início de 1998 após formação e início de carreira sénior num dos grandes da sua cidade natal, o Estudiantes. Pelo Boca, coleccionou episódios que explicam o epíteto, desde apontar o seu centésimo golo como profissional enquanto se preparava a sua substituição após sofrer uma ruptura dos ligamentos cruzados (acabaria por marcar também no primeiro jogo após a recuperação da lesão, nos quartos-de-final da Copa Libertadores diante do eterno rival River Plate, num tento que ficaria para sempre conhecido como o “Golo de Muletas” ou “El Muletazo”), até ao vermelho por baixar os calções no festejo de um golo ou ainda o penalty apontado com os dois pés – este de forma inadvertida, motivado por um escorregão na hora do remate, mas que acabou por levar a FIFA a rever a lei (hoje, tal lance daria origem à anulação do golo e à marcação de um livre indirecto a favor do adversário). Isto, já para não falar da produção para a revista “Mística” feita aquando da sua contratação pelo emblema Xeneize onde fez capa… vestido de mulher.
Mas havia mais por chegar. Após ser eleito o Melhor em Campo na final da Taça Intercontinental de 2000, onde o Boca venceu o Real Madrid (2-1 com bis de “El Titán”, outra das suas alcunhas), Palermo foi contratado pelo Villarreal, então uma equipa recém-promovida ao principal escalão do futebol espanhol e à procura de se estabelecer na elite. Após 17 jogos e 6 golos nessa segunda metade de 2000/01, “El Loco” somava 4 tentos em 14 partidas no início de 2001/02 quando sofreu uma das lesões mais caricatas de que há memória: ao festejar o golo que punha o Villarreal na frente no prolongamento de uma partida da Copa do Rei diante do Levante, Palermo decidiu saltar para a bancada para festejar com os adeptos; o pequeno muro que separava o relvado da mesma, porém, acabou por ceder com o peso destes e tanto a estrutura como os fãs acabariam por cair… em cima da perna esquerda do avançado. Resultado? Dupla fratura da tíbia e do perónio e mais cinco meses fora dos relvados.
(O Villarreal foi o primeiro clube de “El Loco” na Europa.)
A experiência europeia, na verdade, acabaria por ser pouco positiva para Palermo. Após dois anos e meio no Submarino Amarelo, com totais de 21 golos em 81 jogos disputados, o atacante mudou-se para o Betis no verão de 2003, apenas para ser cedido ao secundário Alavés no mercado de transferências seguinte. Faltava claramente algo – e o apelo de casa fez toda a diferença: em Julho de 2004, Palermo regressou ao Boca Juniors e recuperou a velha forma, ficando eternos o golo que marcou ao Independiente em 2007 ainda na sua metade do campo ou aquele de cabeça ante o Vélez Sarsfield a… 40 metros da baliza contrária. Mais um recorde para o Guinness – a sério, aconteceu mesmo.
Martín Palermo não foi, nem de perto nem de longe, o mais virtuoso avançado argentino. Limitado tecnicamente, podia considerar-se um jogador lento e a altura (1,88 metros) também não era propriamente assustadora. É, no entanto, ainda hoje o melhor marcador de sempre do Boca Juniors, 11 anos depois do seu último jogo com a camisola Xeneize: foram 237 finalizações certeiras, maioritariamente saídas do fulminante pé esquerdo ou da cabeça sempre acutilante, daquele a quem um dia o lendário técnico argentino Carlos Bianchi apelidou de “optimista do golo” – e a quem o clube pelo qual conquistou 6 campeonatos, 2 Libertadores, 2 Copas Sul-Americanas, 2 Recopas e uma Taça Intercontinental ofereceu, no momento do adeus aos relvados, a trave de uma das balizas do mítico La Bombonera.
(Palermo conquistou duas Libertadores ao serviço do Boca.)
Mas a História de Palermo na selecção argentina teve também ela mais capítulos após “aquela” fatídica tarde/noite de 1999. Até marcou logo no jogo seguinte, numa vitória por 2-0 sobre o Uruguai, mas depois da eliminação nos quartos-de-final diante do Brasil não mais seria chamado… até 2009, quando Diego Maradona, seu colega no Boca durante alguns meses em 1997, o convocou para a antepenúltima ronda da fase de apuramento para o Mundial do ano seguinte – que a Argentina até perdeu, por 1-0, no… Paraguai, precisamente o país onde se deram os três falhanços. Palermo não marcou nesse jogo, mas voltou a ser chamado na convocatória seguinte e em boa hora: depois de bisar perante o Gana, fazendo o resultado da partida de carácter particular, seria lançado ao intervalo da recepção ao Peru para fazer em cima do apito final o golo que garantiu a vitória da selecção alvi-celeste (2-1) e a manteve na luta pelo apuramento para o Campeonato do Mundo da África do Sul. “Mais um milagre de São Palermo”, disse então o seleccionador, que nos festejos mergulhou… quase literalmente, atirando-se para um relvado encharcado pela chuva torrencial que caía em Buenos Aires nesse dia 10 de Outubro de 2009.
Palermo tinha na altura 36 anos e conquistou dessa forma o lugar na lista final para a prova africana, na qual fez apenas 10 minutos… e marcou, no caso fazendo o 2-0 à Grécia na terceira ronda da fase de grupos, na recarga a um primeiro remate do capitão Lionel Messi. Esta seria a última das suas 15 internacionalizações e também o último dos 9 golos pela equipa das Pampas – além de se tornar o mais velho argentino de sempre a estrear-se e a marcar num Mundial, superando o próprio Maradona, e o primeiro jogador do Boca Juniors a marcar na prova em 80 anos.
(Martín Palermo teve duas passagens distintas pelo Boca Juniors, a primeira entre 1998 e 2001 e a última entre 2005 e 2011.)
Hoje (que é como quem diz, desde 2013) treinador – acaba, de resto, de ser oficializado pelo Platense para a próxima temporada – e a celebrar o 49º aniversário, Martín Palermo foi um dos últimos grandes goleadores-guerreiros, aqueles pontas-de-lança com pouco estilo mas muita eficácia que nunca agradam a todos os adeptos. “El Loco”, porém, agradou a quem tinha de agradar, erguendo-se sempre perante a adversidade – além das lesões, perdeu também um filho recém-nascido em 2006, optando por jogar na partida que se disputou quatro dias depois e marcando dois golos, festejados em lágrimas a olhar para o céu. A sua vida dava um filme… e deu: “Titán”, lançado em 2019 com argumento co-escrito por… Álvaro Recoba, lenda do futebol uruguaio. A sério: tudo o que leu aqui é verdade. Palermo, de facto, foi muito mais que apenas o argentino dos três penaltys falhados num só jogo.
*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.