Zlatan Ibrahimovic: provocador, arrogante ou o visionário mais genial

received_217657894441764(Zlatan despediu-se do futebol após a última jornada da Série A.)

O dia 4 de Junho de 2023 ficará para sempre marcado na História do futebol. Não pelo 35º aniversário daquele que vos escreve estas linhas, que isso nada tem a ver com o nosso adorado jogo, mas sim pelo surpreendente adeus de Zlatan Ibrahimovic – é verdade: apesar dos seus 41 anos, a retirada do que é provavelmente o maior futebolista sueco de sempre surgiu de forma inesperada e sem aviso prévio, após o apito final do triunfo caseiro do AC Milan sobre o Verona (3-1), na última jornada da edição de 2022/23 da Serie A.

Até na hora da despedida, Zlatan foi Zlatan. Enquanto fazia, emocionado, o discurso do adeus, alguns adeptos do Verona ousaram vaiá-lo. Péssima ideia, obviamente. “Assobiem, assobiem. Este é o melhor momento do vosso ano, poderem ver-me”, disparou, arrancando mais uma de tantas ovações estrondosas que recebeu nos 6 anos em que actuou com a camisola rossonera, afirmando-se para sempre adepto do clube onde conquistou um campeonato e uma Supertaça na primeira passagem, entre 2010 e 2012, e outro título de campeão nesta segunda “dança”, iniciada em 2020 e terminada agora.

(Foi no Malmo que tudo começou para Zlatan.)

Na temporada agora finda, Zlatan teve contributo quase nulo devido a ruptura dos ligamentos cruzados contraída no decorrer de 2021/22 e que motivou operação no fim da época: foram apenas 4 jogos e 1 golo, na transformação de uma grande penalidade na derrota por 3-1 com a Udinese a 18 de Março (no que se viria a revelar o seu último jogo como profissional), que fez dele o mais velho goleador de sempre da Serie A. Nos dias anteriores ao jogo do passado fim-de-semana, o veterano avançado ainda mostrava vontade em continuar a jogar, de preferência no Milan, revelando mesmo ter em mãos uma proposta do Monza, emblema detido por Silvio Berlusconi e cujo director é Adriano Galliani – duas personalidades que conviveram com Zlatan na sua primeira passagem pelos Rossoneri –, razão pela qual se revelou uma surpresa ainda maior o anúncio do adeus definitivo.

A comoção nos rostos de todos os intervenientes naquele momento, com especial destaque para os seus colegas e dirigentes, é reveladora da importância que Zlatan teve no Milan, mas também no futebol de um modo geral. Nascido na Suécia mas filho de um bósnio e de uma croata, passou por grandes dificuldades na infância e adolescência e agarrou-se ao futebol como um verdadeiro modo de sobrevivência. “No seu lugar, 99 miúdos em 100 tinham-se afundado, mas ele usou a sua ira para melhorar. Ele disse-me ‘David, eu preciso de estar zangado para jogar bem’”, conta David Lagercrantz na biografia “Eu sou o Zlatan Ibrahimovic”, publicada em 2011.

(Na sua única experiência em Inglaterra, Ibrahimovic ajudou o Manchester United a conquistar Liga Europa e Taça da Liga.)

Palavras que podem ajudar a perceber um bocadinho melhor o Zlatan que hoje todo o mundo futebolístico (e não só) conhece, com todos os seus defeitos, virtudes e especificidades. Se há coisa que este rapaz de 1,95 metros, gigante mas dotado de enorme qualidade técnica e finalizador nato, não pode ser acusado é de alguma vez se ter perdido ou ter deixado de ser fiel a si próprio – a começar logo pela recusa em ir prestar provas ao Arsenal de Arsène Wenger, quando tinha apenas 17 anos e jogava na II divisão da Suécia pelo Malmo. “O Zlatan não faz testes”, respondeu ao renomado técnico gaulês.

No seu país, nunca conseguiu ser campeão – o Malmo era demasiado pequeno para esses intentos. A partir de 2001, porém, o palmarés começou a crescer com medalhas e troféus de vários países, tendo os Países Baixos como ponto de partida: em 3 anos no Ajax conquistou tudo o que era possível a nível interno, mas acima de tudo saltou para os holofotes mediáticos com “aquele” golo ao NAC Breda, que viralizou quando ainda não estavam na moda os vídeos virais. Nesse verão, de resto, já se tinha “apresentado” com o golo extraordinário no Euro 2004 a Buffon, mas foi depois daquele tento (eleito o Golo do Ano pelos espectadores da Eurosport) que passou a ser realmente um nome seguido pelo grosso dos amantes de futebol.

(O Ajax foi o primeiro clube de renome na Europa a apostar no sueco.)

Mais do que isso, entrou no radar dos “tubarões”, com a Juventus a apressar-se a garantir os seus serviços nos últimos dias do mercado de transferências desse ano. Em campo, festejaria dois Scudettos pela Vecchia Signora, posteriormente retirados na secretaria; como “vingança”, mudou-se em 2006/07 para o Inter, vencendo todas as provas internas em 3 anos (o último dos quais já sob o comando de José Mourinho, sagrando-se artilheiro da prova pela primeira vez), até que no verão de 2009, tendo a percepção de que dificilmente conseguiria ganhar a Liga dos Campeões pelos Nerazzurri, aceitou ser envolvido na troca com Eto’o e rumar ao Barcelona, acabado de conquistar a prova.

O tiro, porém, acabaria por lhe sair pela culatra. O génio do sueco chocou de frente com uma genialidade… diferente, que vinha do banco, personificada em Pep Guardiola (num mau-estar que dura até aos dias de hoje), e apesar de tudo ganhar em Espanha, viu a Champions fugir… para o Inter, que afastou mesmo o Barça nas meias-finais antes de “limpar” a final com o Bayern. Foi talvez a aposta mais furada da carreira de Zlatan, que depressa regressou a Itália, agora para o Milan, e para o papel de protagonista que sempre procurou, vencendo o campeonato na primeira época e sagrando-se artilheiro da competição pela segunda vez na carreira na segunda.

Considerando já ter acabado a sua missão em Itália, partiu para França como cara principal do início “deste” PSG que hoje conhecemos – por essa altura era o futebolista que mais dinheiro havia gerado em transferências na História do futebol. “Estou à procura de um apartamento. Se não encontrar nada, provavelmente vou comprar o hotel todo” ou “É verdade que não conheço muitos jogadores aqui, mas eles conhecem-me de certeza” foram apenas duas das frases com que se apresentou ao futebol francês.

(Pela principal Seleção da Suécia, o avançado apontou 62 golos em 112 jogos, tendo participado em 3 Europeus – 2004, 2008 e 2012 – e 2 Mundiais – 2002 e 2006.)

Em Paris, terá mostrado a sua melhor versão em toda a carreira, somando golos (156) e títulos em 4 épocas onde foi rei e senhor da equipa – à semelhança do papel que hoje tem Mbappé. Até que se cansou de jogar em “modo fácil” e aceitou o desafio lançado por José Mourinho de tentar conquistar Inglaterra – não sem antes marcar a despedida à sua imagem: “Cheguei como um rei e parto como uma lenda”. Prestes a festejar o 35º aniversário, muitos foram os sobrolhos que se levantaram – e Zlatan fez questão de dissipar todas as dúvidas logo na apresentação, quando respondeu a Cantona, apelidado pelos adeptos do Manchester United como Rei – “Príncipe de Manchester? Não, eu vou ser o Deus de Manchester” –, mas também na estreia, oferecendo a Supertaça ao Manchester United após vitória por 2-1 na final ante o Leicester.

Já levava 28 golos a meio de Abril (e a Taça da Liga conquistada com 2 golos seus na final) quando uma lesão nos ligamentos cruzados do joelho direito nos quartos-de-final da Liga Europa o impediram de continuar a dar o contributo à equipa em campo no que restou da temporada, festejando de muletas a conquista da prova europeia. Regressaria aos relvados em Novembro, depois de proferir mais uma frase mítica – “Os leões não recuperam como homens” –, e em Fevereiro transferiu-se para os Estados Unidos, prometendo tomar de assalto a MLS. E tomou, mesmo não sendo campeão: foram 53 golos em 58 jogos (além das múltiplas aparições em talk-shows de sucesso), deixando bem claro que, mesmo prestes a abraçar a ternura dos 40, o leão ainda tinha muito por rugir.

(Zlatan esteve quatro temporadas no PSG, exibindo-se sempre a um excelente nível.)

Foi nesse contexto que, em Janeiro de 2020, se deu o regresso ao Milan – e mais uma vez, um adeus… à Zlatan aos Estados Unidos: “Queriam o Zlatan, dei-vos o Zlatan. De nada. Agora voltem lá a ver basebol”. Os 10 golos em 17 jogos nos primeiros 6 meses em San Siro mostraram que Zlatan não estava para brincadeiras e os 17 na temporada seguinte confirmaram-no em pleno: além de ser o melhor marcador da equipa, teve contributo decisivo para o regresso à Liga dos Campeões após largos anos de ausência. O papel na conquista do título já foi menos relevante dentro do campo (até por ter passado vários meses a “jogar” com os ligamentos cruzados rebentados, segundo revelou na festa do título), mas por esta altura percebeu-se claramente o efeito que o sueco tinha enquanto líder – e que ajuda a explicar as lágrimas a escorrerem nos rostos dos colegas na hora da despedida.

“Zlatan há só um”, escreveu o Ajax nas redes sociais. “Carreira digna de um Rei”, podia ler-se na publicação do PSG. “Único” era a legenda de um vídeo do Manchester United com alguns dos melhores momentos de Zlatan no clube. “O primeiro jogador de sempre a representar sete clubes diferentes na Liga dos Campeões”, lembrou a UEFA. Ibrahimovic foi tudo isto e muito mais: um jogador genial, com um talento e personalidade únicos, e um sentido de humor apuradíssimo que tantas vezes foi confundido com arrogância.

(Na sua passagem pelos Estados Unidos, Ibra não conseguiu qualquer título com a camisola dos LA Galaxy.)

“Vi que estava a chover e disse: até Deus está triste”, disse na hora do adeus, em mais uma das frases que tantas manchetes e cliques geraram. Zlatan Ibrahimovic foi o pináculo do atleta preferido das redes sociais ainda antes de haver redes sociais: marcou 573 golos em 988 jogos oficiais, alguns deles capazes de figurar seguramente em todas as compilações dos mais belos da História do jogo – desde pontapés de bicicleta a pontapés de escorpião, mais acessíveis para si devido à prática regular de taekwondo, passando por livres directos, remates a 30 metros ou golos de calcanhar.

Neste percurso incrível, ficam apenas três frustrações: a desejada Liga dos Campeões que nunca chegou, a Bola de Ouro/Troféu de Melhor do Mundo da FIFA – ainda que tenha chegado a dizer “Não preciso de um troféu para saber que sou o melhor” – e uma grande campanha pela sua selecção, que representou durante 22 anos. Passou quase incógnito pelos Mundiais de 2002 e 2006 e marcou 2 golos nos Europeus de 2004, 2008 e 2012, chegando aos quartos-de-final apenas no primeiro; em 2016, ficou a zeros e anunciou o adeus à selecção, falhando assim a presença no Mundial 2018, onde a Suécia chegou aos quartos-de-final de forma surpreendente. Voltaria depois, tendo como objectivo disputar o Euro 2020, mas os problemas físicos impediram que tal acontecesse, com os suecos a não conseguirem o apuramento para o último Mundial – tal como havia acontecido em 2014, quando caíram no play-off perante Portugal (Zlatan bisou… mas Cristiano Ronaldo fez um hat-trick), conduzindo à mítica declaração “Um Mundial sem mim não vale a pena”.

(O Milan foi o clube que mais vezes “acolheu” Ibra: duas.)

É, ainda assim, o melhor marcador da História do país (62 golos em 122 jogos), pelo qual coleccionou também momentos inesquecíveis – com “aquele” jogo particular diante de Inglaterra à cabeça, numa vitória por 4-2 onde marcou todos os golos suecos, incluindo um inacreditável pontapé de bicicleta perto da linha lateral que lhe valeu o Prémio Puskàs. Zlatan não liga a prémios, já sabemos, mas todos os adeptos de futebol deveriam sentir-se premiados por poderem ter tido o privilégio de ver Zlatan jogar. Agora, resta o Youtube… e as memórias.

*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.