É preciso posse para vencer? Pepa e o Paços de Ferreira quebram dogmas

Pepa(Pepa foi o treinador do mês da I Liga em Novembro de 2020.)

Posse de bola. O aspecto do jogo mais discutido e difundido nas discussões sobre estrutura tática e modelo de jogo, uma discussão que ganhou vitrine após o sucesso histórico do tik-taka. Nos acostumamos com afirmações do tipo: “É preciso ter a posse para ter o controle (…) Quem tem a bola não leva gols (…) O time x obteve 70% de posse de bola e dominou o time y.” Mas analisando e interpretando as estatísticas do jogo de futebol descobrimos que em muitas partidas essa posse de bola não proporciona finalizações, chances claras, proatividade, intensidade, controle, fatores que usualmente são associados a times que privilegiam a paciência e a retenção com a posse de bola.

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Por que isso acontece? Será que 60 ou 70% de posse de bola é mesmo tão decisivo no resultado final? Vamos pensar e aprender juntos de maneira sucinta e lógica.

Ora, o importante não é possuir o objeto, a pergunta cá seria: O que o meu time faz com (e sem) a bola? Os meus jogadores são capazes de produzir consistentemente com e sem o esférico?

Nesse contexto posse de bola é subjetivo, pois não há apenas o “Modo Guardiola” de trabalhar com paciência, passes curtos e conduções para zonas ocupadas sem que o receptor necessite se deslocar da sua posição original afim de receber a bola, etc. Tudo isso é possível por ser mecânico, mas não é a única maneira de ganhar.

Outro verbete que ficou associado a analises de estatísticas sem interpretação e que dão margem para análises dúbias: “O time x teve mais posse de bola, criou mais, mas perdeu injustamente.” No futebol nada mais importa (esqueça metodologia, projeto, etc) se a bola passa 5 jogos seguidos sem entrar no esférico, pois o contexto e as variáveis são muitas vezes ignorados, assim os resultados obtido são quase sempre o único critério para validar (ou não) a aplicação (ou interrompimento) de uma metodologia de trabalho ao longo de um ciclo.

Enfim, estabeleceu-se alguns dogmas de estrutura tática que devem ser superados, um deles é que não é possível vencer: sem a posse de bola, sem pressão urgente, sem mentalidade propositiva. Há elementos culturais do futebol divergentes e variáveis em cada país ou continente que respaldam a minha afirmação.

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“Eu não posso levar a Espanha para a Inglaterra, isso não é possível. Eu posso levar um pouco e adaptar, mas não mais que isso.Marcelo Bielsa disse algo nesse contexto no Somos Futebol realizado em 2017 no Rio de Janeiro, penso que não poderia estar mais correto.

Há um meio termo importante quando pensamos um modelo de jogo adequado aos jogadores que possuímos, a necessidade imperial de equilibrar as concepções estruturais do técnico com a possibilidade real de execução (que também é técnica e mental) dos jogadores, mas sem perder de vista a cultura futebolística do país e do clube de futebol (e do campeonato) no qual estou inserido.

Não se trata apenas de propor um modelo de jogo que os jogadores sejam capazes de executar proficuamente por ser esse modelo 100% baseado nas características da matéria-prima que disponho; e também se trata sobre estimular e adaptar os jogadores a múltiplas funções que se encaixam na proposta de estrutura tático-técnico-mental do jogo em todas as fases de treino e preparação até o jogo em si (o processo de automatização do aprendizado).

Sim, pois aqui mora o sucesso do técnico de futebol: desenvolver competências capazes de potencializar o desempenho individual dos jogadores, espontaneamente esse movimento será refletido no coletivo. Um dos aprendizados que o futebol me proporcionou é: a valorização do profissional e do ser humano caminham juntos. Quando há desenvolvimento de competências no campo de trabalho espontaneamente o ser humano (ou o grupo) se torna mais confiante, encorajado e valorizado.

ESTRUTURAÇÃO TÁTICA (BÁSICA)

Pepa entende muito bem de tudo isso, a força do seu Paços de Ferreira é coletiva e de fato a união tem sido o fio condutor do sucesso. Taticamente Pepa tem alinhado o Paços no 4x5x1 (4x3x3 na transição ofensiva), mas o importante é entender a produção dos jogadores com a bola e sem a bola.

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O Paços não costuma ser propositivo, certo? Bem, em partes, na verdade Pepa propõe aquilo que melhor convém ao plano de jogo (não adianta ser um mestre do modelo de jogo se não consegues adaptá-lo a diferentes planos de jogo). O Paços marca a transição defensiva com linhas baixas ou médias composta por 3 médios-centros (por vezes funil invertido) muito bem compactados aos médios-alas e aos extremos… quando há tentativa de ruptura do adversário com passes pelo meio as linhas de passes já estão cortadas (ou os marcadores individualizados) e inicia-se a zona de pressão para retomada da bola.

(Contra sistemas mais ofensivos essa compactação potencializa situações de vantagem numérica para o Paços desde a retomada da bola até a fase de concretização.)

Essa é a fase mais importante na transição defensiva padrão do Paços, pois solidifica a defesa e, como veremos agora, potencializa a resposta na transição ofensiva.

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O Paços está sempre compactado e deixa poucos espaços entre as linhas, para compensar a falta de propensão à diagonal Pepe usa e abusa das ultrapassagens dos médios-alas que jogam aproximados dos extremos, o que segue é são contra-ataques capazes de alterar o posicionamento para campo aberto em segundos.

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Sempre que retomam a bola o jogador em posse tem pelo menos duas opções de interação: passe curto ou esperar pelas ultrapassagens, ou até tabelar e se deslocar no sentido de receber a bola mais adiante. Entretanto o sucesso dessa proposta só funciona porque existe um tremendo esforço coletivo capaz de defender (em campo fechado) com 8, retomar a bola com zonas de pressão médias, liberar o apoio dos alas e concluir a transição ofensiva em campo aberto e vantagem numérica.

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Para encerrar segue mais um exemplo de reação rápida e eficiente do Paços. O Moreirense estava em campo aberto, mas novamente o balanço defensivo da linha de 5 cria zonas de pressão (ou tripés defensivos) que cortam as opções de passe e colocam o Paços em superioridade numérica onde Pepa supõe que vai ganhar o jogo: no meio-campo.

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O Paços sempre tem um extremo aberto para contrabalancear a linha e dar amplitude ao contra-ataque, no caso, esse homem até há pouco tempo era o lateral Oleg, entretanto transferido para o Olympiacos. Ele era acionado porque já estava aberto e progredia por todas as fases da transição até a assistência para o golo porque a ideia era justamente estar ali.

Pepa tem alcançado resultados notáveis através do equilíbrio entre uma defesa solidária e um ataque móvel que se aproveita dos erros do adversário e tem sido eficiente na conclusão. Posse de bola é importante, mas o futebol tem duas fases: uma com a bola e outra sem a bola, aquilo que se faz nesses dois momentos é mais importante do que o tempo-ritmo de construção.

É possível atacar e defender com princípios diversos, mas o sucesso ou fracasso da proposta de jogo nunca vai se desligar da eficiência com a qual se executa cada plano de jogo. Pepa é um ótimo gestor de grupo, tem o plantel em mãos e alcançou níveis elogiaveis de potencialização e desenvolvimento de competências dos seus atletas, fatores que somente os treinadores completos conseguem equilibrar.

*Artigo escrito por João Cerboncini, autor do blog “Futebol & Prancheta“.