Eire: a síndrome de Estocolmo e o desinteresse pelos Keanes

keanes(Roy e Robbie partilham o sobrenome, Keane, e o estatuto de melhores jogadores da história do futebol irlandês.)

Os 4 dias que passei em Dublin na última semana de Janeiro deram para muito. Fiquei a conhecer a História de um país orgulhoso de pertencer à União Europeia, devoto da sua Guinness e dos seus U2 – pelo menos os funcionários dos museus… – e com uma afeição a roçar a síndrome de Estocolmo pela ligação histórica com os vikings e com o Reino Unido. E tive também a confirmação de outro aspecto, este ainda mais surpreendente: na República da Irlanda (Eire na língua nativa), pouco se liga a futebol.

Em 4 dias a passear pela capital irlandesa, ouvi falar muito de Bono, da era Georgian ou do Rei Olaf. Em todos os museus que visitei (e foram muitos), lá estavam referências ao vocalista dos U2, aos reis britânicos que sempre desprezaram a Irlanda ou aos bárbaros nórdicos que entre invasões e estadias mais ou menos prolongadas, acabaram por se misturar com os nativos e deixar no país marcas indeléveis que foram acolhidas e abraçadas pelos locais até aos dias de hoje. Sobre futebol, duas menções apenas, e ambas em formato de estátua de cera: a Jack Charlton, o mais bem sucedido selecionador de sempre do país (e que por acaso até era… inglês), e a George Best, unanimemente reconhecido como o melhor futebolista de sempre… da Irlanda do Norte.

baggiojackcharlton(Roberto Baggio cumprimenta Jack Charlton após a Irlanda bater a Itália, por 1-0, na abertura do Mundial 1994. O técnico conduziu a seleção irlandesa de 1986 a 1996, conseguindo marcar presença num Europeu e dois Mundiais.)

Sobre Roy Keane, nada. Sobre Robbie Keane, idem – e este até é mesmo natural de Dublin. Não são familiares, mas são indiscutivelmente os dois melhores futebolistas nascidos na orgulhosa República da Irlanda, emancipada e livre do jugo inglês desde 1922. Nunca celebraram a conquista de troféus pelo seu país (seria já pedir muito), mas estiveram presentes nalguns dos seus melhores momentos e deixaram marca pelo percurso a nível de clubes.

Roy, o médio, era a personificação da expressão “antes quebrar que torcer”. Nascido em Cork, iniciou a formação desportiva no boxe e foi rejeitado em inúmeras equipas na adolescência, muitas das vezes devido ao facto de ser considerado “muito baixo” para jogar futebol – acabaria por chegar aos 1,80 metros de altura. Em 1989, com 18 anos, conseguiu ingressar numa equipa semi-profissional irlandesa (Cobh Ramblers) e ali deu nas vistas de tal forma que seria contratado pelo histórico Nottingham Forest.

Três anos no principal escalão do futebol inglês (o primeiro dos quais com final da Taça perdida para o Tottenham) com números e exibições de encher o olho chamaram a atenção de clubes com mais ambições, e assim no fim de 92/93 ficou fechada a transferência para o Blackburn Rovers. Uma questão burocrática, porém, impediu a mudança de acontecer numa sexta-feira e Alex Ferguson, ao corrente da situação, tratou pessoalmente de se reunir com Keane e contratá-lo para o Manchester United logo no sábado, numa transferência recorde no futebol inglês até àquela altura (3,75 milhões de libras).

u2(Concerto dos U2 em Bruxelas no dia 1 de Agosto de 2017. A banda formada em 1976 continua a ser uma das maiores “bandeiras” da Irlanda – se não a maior.)

Em Old Trafford, Roy Keane viria a ganhar estatuto de lenda. Ao todo, foram 12 temporadas e meia a representar os Red Devils e 17 troféus conquistados (sete campeonatos, quatro Taças, quatro Supertaças, uma Liga dos Campeões e uma Taça Intercontinental, ganha com golo seu no 1-0 final ante o Palmeiras), a maioria dos quais enquanto envergava a braçadeira de capitão. Em Novembro de 2005, quando recuperava de lesão, surpreendeu ao chegar a acordo para a rescisão de contrato com os Red Devils, juntando-se posteriormente ao Celtic, clube que apoiava na infância, onde viria a conquistar mais um campeonato e uma Taça da Liga escocesa, pendurando as chuteiras no fim da temporada por conselho médico devido às lesões na anca, frequentes na fase final da carreira.

Ao serviço da selecção do seu país, Roy Keane somou 67 internacionalizações, com 9 golos apontados. Foi totalista na campanha do Mundial 94, na qual o Eire chegou aos oitavos-de-final, após conseguir vencer de forma histórica a Itália (que viria a ser finalista) no jogo inaugural na competição, e considerado o melhor jogador da equipa; possivelmente sê-lo-ia também em 2002… não fosse a altercação que teve com o seleccionador, Mick McCarthy (o que também aconteceu com frequência com o seu antecessor, Jack Charlton), e que levou à sua exclusão da equipa ainda antes do torneio começar.

coleman(Séamus Coleman, jogador do Everton desde 2009, é um dos principais futebolistas irlandeses da atualidade.)

O avançado, Robbie, não tem um palmarés tão extenso – nem de longe – e também não se pode gabar de ter integrado a lista de Pelé dos 100 melhores futebolistas vivos, publicada em 2004. É, contudo, ainda hoje o recordista de internacionalizações (146) e golos (68) pela República da Irlanda, selecção que capitaneou durante 10 anos (entre 2006 e 2016), tendo passado 15 anos a fazer golos no futebol inglês, entre Wolverhampton, Coventry City, Leeds United, Tottenham, Liverpool, West Ham e Aston Villa – com 126 golos, é o 15º melhor marcador de sempre da Premier League. Pelos Spurs conquistou a Taça da Liga em 2007/08, vencendo já na fase final da carreira três campeonatos norte-americanos ao serviço do LA Galaxy.

Campeão europeu de sub-18 pela Irlanda em 1998, marcou 3 golos nos 4 jogos realizados pela sua selecção no Mundial 2002, no qual seria eliminada apenas no desempate por penaltys diante de Espanha nos oitavos-de-final. Foi ainda o capitão da equipa nacional nos Europeus de 2012 e 2016, ficando em branco em ambos – durante a qualificação para o primeiro, tornou-se no primeiro irlandês/britânico a marcar mais de 50 golos por uma selecção nacional.

PortugalIrlanda1995(Luís Figo tenta fugir a dois adversários durante o Portugal – Irlanda realizado a 15 de Novembro de 1995. No antigo Estádio da Luz, a “equipa das Quinas” venceu por 3-0 e garantiu a qualificação para o Euro 1996.)

Há ainda, nos nomes míticos, homens como Paul McGrath, Shay Given, Nial Quinn, John Aldridge, Denis Irwin ou David O’Leary. Na actualidade, o lateral-direito Seamus Coleman, capitão e referência também no Everton, e o interessante jovem guardião Gavin Bazunu são os futebolistas irlandeses mais cotados. Está bom de ver, ainda assim, o porquê de desde 2016 a Irlanda não se conseguir qualificar para uma grande competição internacional – e talvez porque nas ruas de Dublin se ouve falar de tudo… menos de futebol.

*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.