(A marcação de livres tornou-se na grande “imagem de marca” de Mihajlovic.)
É quase uma inevitabilidade: quando alguém morre ou passa por graves problemas de saúde, a tendência natural é exaltar as virtudes e esquecer ou esconder os defeitos, enaltecer o legado e desvalorizar as polémicas passadas. E talvez essa forma de pensar e agir esteja correcta, ainda que se exija algo diferente quando o intuito é lembrar de forma objectiva o percurso da pessoa em questão.
Sinisa Mihajlovic é um desses casos. Um grande futebolista, também com créditos firmados enquanto treinador (ainda que em menor escala), mas sempre dado a polémicas dentro e fora do campo, quer por comportamentos quer por palavras, que foram praticamente esquecidas e colocadas de lado quando, em 2019 – e depois da rábula do afastamento enquanto treinador do Sporting dez dias após ter chegado, na sequência da queda de Bruno de Carvalho –, foi comunicado que padecia de leucemia. Após três anos de luta, avanços e recuos e muitas manifestações de compaixão vindas de todos os quadrantes do futebol mundial, Mihajlovic partiu na última sexta-feira, aos 53 anos, numa altura em que se encontrava sem clube depois de ter sido despedido do comando técnico do Bolonha em Setembro, e o mundo do futebol reagiu com comoção.
(Foi no Estrela Vermelha que o esquerdino saltou para a ribalta ao sagrar-se Campeão Europeu.)
Mas nem sempre foi assim. As controvérsias andaram sempre de braço dado com o jogador e treinador, a começar logo pela questão da nacionalidade: nascido em 1969 em Vukovar, antiga Jugoslávia (hoje território croata), filho de pai sérvio/bósnio e mãe croata, Mihajlovic sempre se identificou como sérvio. Ficariam célebres os confrontos com o croata Igor Stimac na final da Taça da Jugoslávia de 1991, no embate entre o seu Estrela Vermelha de Belgrado e o Hajduk Split, disputada uma semana depois de bombardeamentos à sua cidade natal (Borovo): de acordo com Mihajlovic, Stimac ter-lhe-á dito “Espero que os nossos homens matem toda a tua família”, numa altura em que o sérvio não conseguia falar com os seus pais há vários dias devido ao corte das linhas telefónicas. A partir de então, e como o próprio admitiu, passou o resto do jogo a tentar lesionar gravemente Stimac – e o contrário igual –, com os dois jogadores a serem expulsos ao minuto 70 após uma entrada duríssima de Mihajlovic sobre outro jogador do Hajduk que provocou nova onda de confrontos a envolver as duas equipas. Um mês depois, novo encontro para o campeonato… e nova expulsão para Mihajlovic.
Por esta altura, o sérvio já tinha ficado de fora da lista de Mirko Jozic (mais tarde treinador do… Sporting) para o Mundial de sub-20 que a geração de ouro jugoslava venceu em 1987, no Chile, alegadamente por ter rejeitado uma oferta do Dinamo de Zagreb, equipa com a qual treinou à experiência e até fez estágios. E tudo porque, numa altura em que já era titular no Borovo, clube da sua cidade que competia na Liga provincial croata, equivalente ao terceiro escalão do futebol jugoslavo, iria apenas ser a quarta opção para o meio-campo do conjunto de Zagreb – além da exigência do técnico Miroslav Blazevic para que cortasse o longo cabelo encaracolado.
(Mihajlovic representou a Jugoslávia no Mundial 1998 e no Euro 2000.)
Acabaria por rumar no verão de 1988 para o Vojvodina, sagrando-se campeão nacional de forma surpreendente, e em 90/91 viria a conquistar a Taça dos Campeões Europeus pelo Estrela Vermelha, junto de uma constelação de estrelas que incluía nomes como Robert Prosinecki, Dejan Savicevic, Vladimir Jugovic ou Darko Pancev. Ainda assim, o próprio Mihajlovic revelar-se-ia decisivo: foram dele os dois golos (o primeiro na transformação de um livre directo) que valeram o empate caseiro ante o Bayern Munique na segunda mão das meias-finais, depois da vitória por 2-1 na Alemanha no primeiro jogo. Na partida decisiva, apontaria ainda um dos penaltys no desempate final diante do Marselha, no que mais tarde considerou “a final mais aborrecida da História”, admitindo que o Estrela Vermelha “passou o jogo todo a defender”.
No verão de 1992, já com a guerra da Jugoslávia a decorrer em pleno – razão pela qual não pôde participar no Europeu, o tal que a Dinamarca haveria de vencer após ser chamada à última hora para substituir os jugoslavos –, Mihajlovic transferiu-se para a Roma por pedido expresso do compatriota Vujadin Boskov. Inicialmente afirmou-se mais uma vez como médio esquerdo, assumindo-se como titular indiscutível mesmo tendo de lutar por um lugar de estrangeiro com nomes como Aldair, Hassler e Caniggia, mas uma lesão grave de Carboni levou a que recuasse para a posição de lateral – que manteve na época seguinte, já sob o comando do italiano Carlo Mazzone, ainda que a contragosto. Anos mais tarde, já retirado, consideraria estas duas épocas “as piores da carreira”.
(Em 2018, Augusto Inácio e Bruno de Carvalho apresentaram Sinisa Mihajlovic como treinador do Sporting, mas, dez dias depois, os novos responsáveis pelo clube despediram o sérvio.)
Seguir-se-iam quatro temporadas em representação da Sampdoria, com sensação aziaga logo na estreia oficial: na Supertaça de 1994, Mihajlovic marcou… de livre directo, mas acabaria por falhar o seu pontapé no desempate final por penaltys, atirando à trave, com o Milan a conquistar o troféu. Sob o comando de Sven-Goran Eriksson passaria a ser utilizado maioritariamente como central, e no verão de 1998 estrear-se-ia finalmente numa grande competição de selecções com a Jugoslávia: o Mundial de França, onde seria mais uma vez… Mihajlovic. Autor de grandes exibições – foi dele o golo que valeu a vitória inaugural diante do Irão –, ficaria marcado também pela troca de insultos com o alemão Jens Jeremies após uma entrada dura do sérvio; aparentemente tudo teria ficado por aí, mas mais tarde foi possível constatar pelas imagens televisivas que Mihajlovic cuspiu na cara do médio alemão.
Nesse verão mudou-se para a Lazio, onde se reuniria com o técnico sueco e se tornaria amigo de Sérgio Conceição e Fernando Couto e onde conquistaria finalmente troféus em Itália. Primeiro a Supertaça e a Taça das Taças (a última edição da competição), logo na primeira temporada, e depois o triplete em 99/00: campeonato, Taça e Supertaça Europeia, cumprindo os 90 minutos na final perante o Manchester United (1-0). Juntou-lhe mais uma Supertaça, em 2000, num louco 4-3 sobre o Inter de Milão onde marcou de penalty, e a Taça em 2003/04, na despedida do emblema romano aos 35 anos.
(O Inter foi o último clube do sérvio enquanto jogador.)
Mas calma: claro que pelo meio houve lugar a mais polémicas. No Euro 2000, no louco jogo inaugural diante da Eslovénia, Mihajlovic foi expulso com duplo amarelo pelo português Vítor Pereira logo ao minuto 60, após empurrar um adversário com o jogo parado, numa altura em que a sua equipa perdia por 3-0 (de forma milagrosa, acabaria por conseguir empatar a partida com grande exibição do nosso conhecido Drulovic). Alguns meses depois, num jogo da Liga dos Campeões contra o Arsenal, foi acusado de ter chamado “macaco de m…” a Patrick Vieira já depois do apito final, após confrontos com vários jogadores dos Gunners, e posteriormente admitiu tê-lo feito, ainda que alegadamente em retaliação para com o insulto proferido pelo francês de “cigano de m…”. Curiosamente, os dois viriam a reencontrar-se no Inter de Milão, com Mihjalovic já como adjunto de Roberto Mancini, e tornar-se-iam grandes amigos, com o antigo internacional francês a ser até um dos convidados para o jogo de homenagem ao sérvio em Novi Sad em 2007.
Ainda na Lazio, foi suspenso pela UEFA por 8 jogos depois de cuspir e pontapear Adrian Mutu numa partida da Liga dos Campeões ante o Chelsea, em 2003, com a pergunta feita pelo jornal “The Guardian” a ficar para a História: “Será este o jogador mais perverso do futebol?” Mais uma vez de forma curiosa, acabaria por ser treinador do romeno na Fiorentina em 2010/11. No Inter, onde venceu mais um campeonato e duas Taças (a primeira das quais com um golo seu na segunda mão da final, diante da Roma… de livre directo), mesmo já veterano continuou a fazer “amigos”, como Zlatan Ibrahimovic, na altura na Juventus, com quem travou duelos duríssimos durante duas épocas – imagens televisivas chegaram a mostrar uma cabeçada do sueco ao sérvio. Mais tarde, tal como com Patrick Vieira e Mutu, reencontraria Ibra como adjunto no Inter, com o sueco a chegar a dizer que foi com Mihajlovic que aprendeu a marcar livres directos.
(Mihajlovic orientou o Bolonha até Setembro último.)
Obviamente, as polémicas continuaram enquanto treinador. Depois de dois anos como adjunto de Mancini no Inter, e após a saída para dar lugar à equipa técnica liderada por José Mourinho, começou a carreira de treinador principal em Novembro de 2008 ao ser contratado pelo Bolonha, acabando demitido em Abril de 2009, após uma derrota que provocou a queda para a zona de descida e com rumores na imprensa italiana sobre conflitos com vários consagrados do plantel. Fez depois um trabalho meritório no Catania e outro menos bem sucedido na Fiorentina, até que em Maio de 2012 assumiu a selecção da Sérvia… e não demoraria a entrar em choque com jogadores – no caso, o então benfiquista Matic e também Ljajic, que se retiraram da selecção durante alguns meses após divergências com o técnico.
Depois de falhar o apuramento para o Mundial do Brasil, acabou por se mudar para a Sampdoria e o bom trabalho abriu-lhe as portas do AC Milan, onde já não foi tão feliz – ainda que fique para a História como o treinador que não teve medo de dar a titularidade da baliza Rossonera a um menino de 16 anos chamado Gianluigi Donnaruma. Após a sua demissão, a namorada de Kevin-Prince Boateng disse que o ambiente na equipa ia melhorar; a resposta de Mihajlovic foi elucidativa: “Considero que as mulheres não deveriam falar de futebol. Não têm essa capacidade”.
(O recorde de golos de livre direto na Série A pertence ao ex-internacional jugoslavo: 28. Na foto, ei-lo a executar um pontapé durante um derby romano entre Lázio e Roma.)
No Torino, mais uma polémica extra-futebol: questionado sobre uma infame montagem feita pelos adeptos da Lazio com Anne Frank vestida com uma camisola da Roma, que motivou até leituras de extratos do diário da menina judia nos estádios italianos nas duas jornadas, Mihajlovic respondeu da seguinte forma: “Anne Frank? Não sei quem é. Não leio jornais, não posso falar sobre o assunto. Peço desculpa mas declaro-me ignorante nessa matéria”. Falta dizer, se calhar até para se perceberem melhor estas declarações, que Mihajlovic era um nacionalista convicto, defensor tanto dos regimes de Tito como de Slobodan Milosevic, formalmente acusado de crimes de guerra e contra a humanidade (entre os quais genocídio) pela intervenção militar das tropas jugoslavas na Bósnia, Croácia e Kosovo, mantendo ainda amizade com Zeljko Raznatovic, conhecido como Arkan, antigo líder paramilitar sérvio também ele acusado de crimes de guerra. “Com Tito havia valores, família, uma ideia de País e Povo. Com ele, a Jugoslávia era o país mais bonito do mundo. Se nacionalista significa patriota, se isso significa amar a minha terra e a minha nação, sim, eu sou” é uma das suas frases mais conhecidas.
Depois do Torino, deu-se a rábula da contratação para o Sporting por parte de Bruno de Carvalho… apenas para ser demitido dez dias depois pela Comissão de Gestão liderada por Sousa Cintra, num processo que se arrastava na justiça desportiva até hoje. Em Janeiro de 2019 regressou ao Bolonha, o primeiro clube que havia treinado na carreira, e por lá ficou até ao último mês de Setembro, sendo que grande parte desta passagem se processou enquanto lutava contra a leucemia – o que ainda assim não o impediu de se atirar ao amigo e ex-colega de balneário e de banco Mancini, em Abril de 2021, devido ao facto do seleccionador italiano ter convocado Roberto Soriano, médio do Bolonha, para um triplo compromisso de seleções com Irlanda do Norte, Bulgária e Lituânia… e não o ter colocado em campo em nenhum dos jogos. “É o melhor médio italiano da atualidade, não faz qualquer sentido. O melhor tinha sido ele ter ficado connosco. Não teve minutos contra uns zés-ninguém. Honestamente, se fosse ao Soriano, tinha dito ao Mancini para ir dar uma volta”, disparou na altura.
(Sérgio Conceição foi colega de Mihajlovic na Lázio e prestou-lhe uma sentida homenagem na passada sexta-feira.)
Em Maio de 2020, em plena pandemia do coronavírus, o FC Porto promoveu um “reencontro”, ainda que virtual, entre Sérgio Conceição e Mihajlovic, com o treinador portista a emocionar-se por rever e voltar a falar com “uma pessoa incrível”. Na última sexta-feira, após a notícia da morte do sérvio, recorreu às redes sociais para fazer uma última homenagem ao antigo colega, que deixa mulher e 5 filhos. “Hoje partiu um amigo, uma inspiração, um campeão. Sinisa, serás para sempre recordado pelo que fizeste em campo, e também por quem eras fora dele. Foste uma presença importante na nossa chegada a Roma, foi lado a lado que vimos as nossas famílias crescerem, que crescemos nós enquanto jogadores, homens, pais de família. O futebol deu-me tudo aquilo que tenho hoje. Momentos como este recordam-nos da importância que têm as pessoas que cruzamos no nosso caminho. Os verdadeiros trofeus que guardo da carreira como jogador são momentos como aqueles que vivemos juntos. Descansa em paz, amigo. Tens em Portugal uma família a olhar pela tua!”
Como jogador, Mihajlovic destacou-se, além da vontade férrea (que o fazia acabar por se exceder em muitas situações, com o já deu para perceber), pela excelência na marcação de livres directos. Ao todo, marcou 28 golos dessa forma na Serie A (ainda hoje recordista, em igualdade com Pirlo), o último dos quais a valer uma vitória do Inter por 2-1 diante do Ascoli, na fase final de 2005/06, que se revelaria também o derradeiro da sua carreira, encerrada nesse verão aos 37 anos. Uma arte que Mihajlovic aperfeiçoou e dominou como quase nenhum outro jogador na História do jogo – pessoalmente, coloco-o no top-3 de melhores marcadores de livres de sempre, apenas atrás de Juninho Pernambucano e David Beckham. Para a História ficará o hat-trick na conversão de livres directos pela Lazio diante da Sampdoria em 98/99, bem como na memória colectiva dos benfiquistas o golaço que fechou a vitória Laziale por 3-1 na terceira pré-eliminatória de acesso à fase de grupos da Liga dos Campeões em 2003/04, praticamente afastando as Águias da prova (cenário confirmado em Portugal com triunfo por 1-0).
Duro, polémico, homem de convicções tão fortes quanto o seu pé esquerdo: Sinisa Mihajlovic é uma figura incontornável do futebol mundial nas décadas de 90 e 2000 e, porque não, da História da ex-Jugoslávia na parte final do período pré-desmembramento e nos primeiros anos do pós. Muito provavelmente a sua vida irá dar um livro, e depois um filme, e uma coisa é certa: matéria para compor um best-seller e um êxito de bilheteira não faltará.
*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.