Marc-Vivien Foé: o leão que não morreu, apenas dorme

foecamaroes(Marc-Vivien Foé fez 62 jogos e 8 golos pela principal Seleção Camaronesa, com destaque para a participação nos Mundiais 1994 e 2002.)

Passaram esta segunda-feira 20 anos sobre o dia em que vivenciei pela primeira vez uma experiência de comoção directamente relacionada com futebol. Claro que já tinha chorado, rido, festejado antes, mas fruto de resultados e desfechos de jogos ou com jogadas de tirar o fôlego; naquele dia 26 de Junho de 2023, porém, percebi que os jogadores de futebol são humanos e, acima de tudo, mortais como todos nós.

Marc-Vivien Foé. É esse o nome que ainda hoje é recordado com saudade e reverência por todos os que com ele puderam privar. Uma força da natureza que morreu em campo, em representação do seu país, que tanto amava, em plenas meias-finais da Taça das Confederações onde os Camarões vinham a surpreender em toda a linha até ali. Foé tinha 28 anos e vinha da melhor temporada da carreira, com 38 jogos e 9 golos pelo Manchester City – que desde então não permite que nenhum jogador utilize a camisola 23, em memória do médio camaronês.

(O Manchester City foi o último clube que o médio representou.)

Com formação dividida entre o Union Garoua e o Canon Yaoundé, do seu país, Foé não demorou a dar nas vistas e com apenas 19 anos rumou a França, assinando pelo Lens. Por lá ficaria 4 épocas e meia, celebrando a conquista do campeonato em 97/98 (único na História do clube), tendo até recebido uma proposta do Manchester United no fim dessa temporada – que viria a cair com a grave lesão sofrida já no estágio de preparação para o Mundial 98, falhando assim a competição que se realizou no país onde actuava nessa altura.

Após mais meia época no Lens, “Marco”, como era carinhosamente tratado no mundo do futebol, mudar-se-ia de facto para Inglaterra, mas pela porta do West Ham, que fez dele a sua contratação mais cara até então (4,2 milhões de libras), chegando ao clube na mesma semana que Paolo Di Canio, outro nome incontornável. Voltaria a França em 2000/01, para representar o Lyon, vencendo a Taça da Liga na primeira época e o campeonato gaulês na segunda, e no verão de 2002 aceitou regressar à Premier League por empréstimo de um ano, reforçando um Manchester City que havia acabado de ser promovido do Championship e muito longe do clube que conhecemos actualmente, ainda que tivesse no seu elenco nomes como Peter Schmeichel, Alf-Inge Haaland, Nicolas Anelka, Robbie Fowler ou um jovem Shaun Wright-Phillips.

(Foé chegou à Europa pela porta do Lens na temporada 94/95.)

“O Marc é absolutamente essencial para o que queremos fazer. A posição onde ele joga é vital, é um jogador forte, um atleta tremendo e que conhece o futebol inglês, onde esteve muito bem pelo West Ham. Acho que é uma contratação tremendamente importante para nós. Algumas contratações, tu simplesmente sabes que são acertadas, e esta é absolutamente acertada para o Manchester City”, dizia o treinador Kevin Keegan no momento de apresentar o camaronês, a quem chamou mesmo de “o Roy Keane do City”. Os Citizens terminaram essa temporada num tranquilo nono posto e Foé foi peça fulcral, somando os supra-citados 38 jogos e 9 golos – 2 dos quais na vitória por 3-0 sobre o Sunderland, na jornada 35, com o segundo a ser também o último de sempre do Manchester City no estádio Maine Road, que deu então lugar ao City of Manchester onde actuam ainda hoje.

Finda a temporada em Inglaterra, Foé seguiu para… França para disputar a Taça das Confederações pela selecção camaronesa, campeã africana em 2002 (e também 2000) com o médio como elemento também essencial. Internacional A pelos Camarões desde os 17 anos, com participações nos Mundiais de 94 e 2002 (não participou em 98 pelos motivos revelados anteriormente), Marc-Vivien Foé foi titular nas vitórias sobre Brasil e Turquia (ambas por 1-0) e, com os Leões Indomáveis já apurados, descansou no terceiro jogo da fase de grupos, diante dos Estados Unidos (0-0).

(Paolo Di Canio e Marc-Vivien Foé foram apresentados em simultâneo pelo West Ham.)

Voltaria à equipa inicial para a partida das meias-finais, diante da Colômbia, e tudo corria de feição até ao minuto 72, quando o médio nascido em Yaoundé colapsou no centro do campo do estádio Gerland, em Lyon, sem motivo aparente. Após alguns minutos de tentativas (falhadas) de reanimação, Foé foi levado de urgência para o hospital e o jogo prosseguiu, com a comitiva camaronesa a celebrar a vitória por 1-0 e consequente apuramento para a final da decisão até perder o chão por completo ao saber da notícia.

A primeira autópsia ao médio camaronês foi inconclusiva, mas a segunda mostrou que o jogador padecia de uma cardiomiopatia hipertrófica, uma condição hereditária rara que pode causar danos irreparáveis – incluindo a morte, tal como se verificou neste caso – com a prática de exercício físico intenso. A esposa de Foé, Marie-Louise, revelou posteriormente que, na véspera do jogo, o médio estava com problemas gástricos, mas que nem por um momento pensou em não jogar. O próprio selecionador dos Camarões, Winfried Schafer, assumiu que o queria tirar do campo minutos antes da tragédia, considerando que Foé parecia cansado, mas o jogador terá dito que se sentia capaz de continuar. Em 2020, Eric Djemba-Djemba, presente no jogo fatídico (e que mais tarde rumaria ao Manchester United), faria uma revelação ainda mais incrível. “Nunca esquecerei o que nos disse no autocarro. Olhou para nós e disparou: ‘Se algum de nós tiver de morrer hoje, então morreremos hoje. Não podemos perder este jogo. Prometi à minha mulher e aos meus filhos que vamos à final. Temos de ganhar a Taça das Confederações’”.

(Carinhosamente tratado no meio futebolístico por Marco, o futebolista camaronês atuou duas temporadas no Ol. Lyon, e seria precisamente no Stade Gerland que viria a fazer o último jogo da sua vida.)

Apesar do clima de consternação e pesar que marcou a prova a partir daí – e que pôde ser sentido ainda nesse dia, quando França e Turquia disputaram a outra partida das meias-finais, com vários atletas gauleses a não conseguir conter as lágrimas, nomeadamente os ex-colegas de Foé no Lens e no Lyon –, a competição continuou e os Camarões foram mesmo jogar a final contra os anfitriões. Não venceram, mas deram muita luta, caindo apenas mercê do golo de Thierry Henry ao minuto 7 do prolongamento, depois do nulo registado no tempo regulamentar, numa altura em que ainda estava em vigor a regra do golo de ouro.

A cerimónia pré-início do jogo, de resto, providenciou uma das imagens mais fortes vistas num campo de futebol, e que ficaria para sempre marcada na História do jogo: na entrada das equipas em campo, os capitães Rigobert Song e Marcel Desailly seguraram uma fotografia gigante de Marc-Vivien Foé. Essa mesma imagem seria simbolicamente premiada com a medalha de vice-campeão no fim do encontro, com o médio a ser eleito também o terceiro melhor jogador da prova.

“O Marc não era apenas um jogador especial. Era uma pessoa especial. Todos sentiremos falta do seu sorriso e da sua personalidade. Nada era problema para ele, era um verdadeiro profissional, amado por todos os atletas e directores. Tinha a capacidade de nos fazer sorrir e sentir melhor. Foi um privilégio trabalhar com ele, e estávamos a meio do processo para negociar a sua transferência em definitivo, o que o tornaria de vez um jogador do Manchester City”, revelou então Kevin Keegan. Apesar da curta estadia nos Citizens, foram milhares os adeptos que se deslocaram ao recinto do clube no dia seguinte à morte de Foé para prestar uma homenagem ao médio camaronês, descrito por absolutamente todos os que com ele privaram como uma pessoa absolutamente extraordinária, de uma humildade fascinante, sendo ainda hoje possível visitar o memorial a ele dedicado em Maine Road.

(Esta foi a forma encontrada em Lens para honrar e homenagear o antigo jogador: dedicar-lhe o nome de uma rua.)

Também em França, Marc-Vivien Foé deixou uma marca indelével, com Lens e Lyon a retirarem o número 17, que o médio camaronês usara em ambos os clubes, tendo sido ainda dado o seu nome a uma rua de Lens próxima do estádio do clube. Foé teve direito a um funeral com honras de estado no seu país natal, sendo enterrado no local onde havia começado a construir uma academia de futebol, recebendo ainda a título póstumo a ordem de Commander of the National Order of Valour, prémio dado a quem presta altos serviços ao país.

Em 2009, antes do pontapé de saída da final da Taça das Confederações entre Brasil e Estados Unidos, um dos seus três filhos fez um discurso em memória do jogador camaronês. No mesmo ano, a rádio francesa RFI criou um prémio com o nome de Marc-Vivien Foé para distinguir o melhor jogador africano da Ligue 1 em cada temporada. A sua morte acabou por contribuir para enormes avanços na testagem de problemas cardíacos em atletas de alta competição e também no tratamento durante os jogos caso aconteçam situações semelhantes – um exemplo claro é o de Christian Eriksen, que esteve clinicamente morto durante vários minutos na partida entre Dinamarca e Finlândia, no Euro 2020, acabando por ser reanimado e tendo inclusivamente regressado aos relvados poucos meses depois.


(A emotiva homenagem prestada pelos Camarões a Marc-Vivien Foé após a final da Taça das Confederações de 2003.)

Passadas duas décadas, o legado de Foé continua vivo, com todos os clubes por onde passou a fazerem questão de garantir isso mesmo. “20 anos. Marc-Vivien Foé. Nunca será esquecido!”, podia ler-se na conta oficial do Manchester City de Twitter nesta segunda-feira. Por aqui também nunca será, até porque, como diz um ditado camaronês, “um leão nunca morre, apenas dorme”.

*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.