(Eis o primeiro onze da história do Japão em Mundiais: derrota frente à Argentina por 0-1. Créditos de imagem: Getty Images.)
Diz a sabedoria popular (nomeadamente o pessoal mais romântico) que não há amor como o primeiro – um conceito válido certamente para muita gente nos mais variados aspectos da sua vida. No caso deste que vos escreve, esse ditado assenta que nem uma luva no que respeita a Campeonatos do Mundo de futebol: para mim, não houve mesmo até agora algum que superasse o torneio de 1998, em França.
Tinha na altura 10 anos e seria provavelmente o maior fanático por futebol do mundo nessa faixa etária – ou, vá, pelo menos no código postal 8800 (Tavira). Coleccionava as revistas da especialidade, conhecia os nomes de todos os participantes no evento, em que clube jogavam e as suas idades: só não tinha a morada decorada porque essa informação não vinha nos tais almanaques (uma pena)! Sem Portugal para torcer a favor (curiosamente pela última vez até aos dias de hoje), já nessa altura me agarrava aos underdogs, aquelas equipas mais exóticas e em quem poucos apostam. Já era, então, um fervoroso consumidor de todo o universo Dragon Ball (pelo qual sou absolutamente fanático até aos dias de hoje) e por essa razão havia desenvolvido um fascínio pela cultura e forma de estar nipónica, pelo que na hora de me decidir por que selecção torcer, a escolha não foi complicada: Japão, pois claro.
(Nakata em luta com Matías Almeyda. Os argentinos levaram a melhor sobre os estreantes japoneses.)
Tal como para mim, também o Mundial 98 era o primeiro de sempre da selecção japonesa, que havia ficado de fora do torneio quatro anos antes de forma traumática – ao permitir o 2-2 ao Iraque no último minuto do jogo disputado em Doha, no Qatar, cairia para fora dos lugares de apuramento devido ao saldo de golos desfavorável em relação à Coreia do Sul, numa partida ainda hoje recordada como a Agonia de Doha (ou Milagre de Doha, na versão sul-coreana). O bilhete para a fase final de França chegaria com um golo de ouro do suplente Masayuki Okano no minuto 118 do play-off com o Irão (3-2), tornando o Japão no décimo país asiático da História a estar presente num Mundial – depois de Indonésia, Coreia do Sul, Coreia do Norte, Irão, Kuwait, Iraque, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Israel, que em 1970, ano da sua única participação, ainda estava inserido na qualificação asiática.
A participação japonesa deu que falar logo a partir da convocatória, na qual não figurou precisamente o jogador nipónico mais conhecido a nível mundial na altura: Kazuyoshi Miura, cuja história já contámos e poderá recordar aqui. Nenhum dos 22 eleitos, de resto, jogava fora do campeonato japonês, então ainda a dar os primeiros passos na sua era “moderna” e contando para isso com o auxílio de futebolistas europeus e americanos em fim de carreira, como Zico, Dragan Stojkovic ou o nosso Paulo Futre, bem como treinadores renomados – Arsène Wenger, por exemplo, saíra do Nagoya Grampus para o Arsenal no verão de 1996 e Carlos Queiroz treinara a mesma equipa no ano seguinte.
(Shinji Ono, um dos japoneses presentes no Mundial ’98 que fez carreira na Europa, parece ser derrubado por um jamaicano.)
Para abertura das hostilidades, dificilmente o Japão poderia encontrar tarefa mais complicada: no seu grupo tinha apenas e só a toda-poderosa Argentina, já então bicampeã mundial, e uma Croácia que fazia igualmente a primeira aparição como estado independente mas que tinha uma verdadeira geração de ouro, com as suas maiores estrelas a ostentarem no palmarés o título mundial de sub-20 ganho em 1987 ainda em representação de uma Jugoslávia unificada; restava a Jamaica, outra estreante e provavelmente a única selecção da competição que poderia roubar o estatuto de mais exótica aos japoneses. Que se bateram bem – muito bem mesmo: os dois primeiros jogos foram logo diante de Argentina e Croácia e em ambos o Japão vendeu muito cara a derrota, perdendo por 1-0 nas duas partidas (contra os croatas aguentou até aos 77 minutos) e demonstrando qualidades desconhecidas do grande público até então, nomeadamente nos processos defensivos. Causou, por isso, alguma estranheza o resultado na despedida da prova: derrota por 2-1 contra uma Jamaica que havia registado números bem piores anteriormente (perdera 3-1 com a Croácia e 5-0 com a Argentina) e que daí para cá nunca mais conseguiu voltar ao certame, no que foi um dos únicos jogos do torneio que não consegui ver – a RTP transmitiu todas as partidas desse Mundial, com excepção da terceira ronda da fase de grupos: como os dois jogos de cada grupo se realizavam em simultâneo, só a partida mais cotada era transmitida, com o outro encontro a merecer apenas uma repetição dos golos num quadradinho no canto inferior direito do ecrã.
Para o comum adepto, o Japão ficou-se por aí no Mundial 98, podendo inclusivamente ser etiquetado como a segunda pior equipa do torneio – só os Estados Unidos fizeram os mesmos zero pontos, mas com uma diferença de golos ainda mais desfavorável (1-5 contra 1-4 dos nipónicos). Para mim, porém, aqueles 11 ou 12 nomes dos atletas mais utilizados por Takeshi Okada nunca me saíram da cabeça, a começar pelo guardião Yoshikatsu Kawaguchi (que fez grandes exibições ante Argentina e Croácia e que mais tarde se sagraria vencedor do Championship, o segundo escalão do futebol inglês, ao serviço do Portsmouth); Akira Narahashi, Naomi Soma, Masami Ihara, Yutaka Akita, Eisuke Nakanishi, Motohiro Yamaguchi e Masashi Nakayama (autor do único golo japonês na prova) fizeram toda a sua carreira no Japão, com Hiroshi Nanami e Shoji Jo a registarem curtas passagens por Itália (Veneza) e Espanha (Valladolid), respectivamente, logo após o França 98. Não esquecendo também o nipónico de raízes brasileiras (já uma tradição na selecção japonesa) Wagner Lopes, avançado que se mudara para o Japão em 1987 após iniciar a carreira no São Paulo e que ali cumpriu o resto da carreira, aparecendo em França como suplente utilizado nas três partidas disputadas pelos japoneses (e autor da assistência para o golo de Nakayama diante da Jamaica).
(Shoji Jo e Slaven Bilić lutam pela bola durante o Japão 0-1 Croácia da 2ª Jornada.)
E depois havia, obviamente, o nome que todos deverão ainda recordar por estes dias: Hidetoshi Nakata, na altura um médio ofensivo de apenas 21 anos que só conhecera na ainda curta carreira o Shonan Bellmare – por quem venceu a Taça das Taças Asiática ainda com 18 anos, marcando precisamente o golo que deu a vitória ao emblema japonês na final contra o Al-Talaba (2-1). As três derrotas japonesas no Mundial 98 não o impediram de dar nas vistas e de imediato foi contratado pelo Perugia, tornando-se o segundo atleta nipónico a competir na Serie A depois de, claro está, King Kazu Miura o ter feito quatro anos antes.
Na primeira época em Itália, Nakata apontou 10 golos em 33 jogos (recorde na carreira) e a meio de 99/00 chegaria à Roma em troca de cerca de 20 milhões de euros mais o passe de Alenitchev (esse mesmo), vencendo o campeonato com o emblema romano na temporada seguinte. Seria no verão de 2001 contratado pelo Parma por 28 milhões de euros, tornando-se o futebolista asiático mais caro de sempre (recorde que ostentou durante 14 anos, até Son Heung-min se transferir do Bayer Leverkusen para o Tottenham por 30 milhões em 2015), e ali ficou dois anos e meio, conquistando a Taça logo na primeira época (com um golo marcado ao minuto 90 na primeira mão da final, numa derrota por 2-1 com a Juventus que acabaria por se revelar decisiva para a vitória do troféu, dado o triunfo por 1-0 na segunda mão); foi depois cedido ao Bolonha e à Fiorentina e em 2005/06 experimentou o futebol inglês pela porta do Bolton – que acabaria por se revelar a sua última paragem: após a participação no Mundial 2006, na Alemanha (fez os três jogos da fase de grupos, sendo eleito o melhor em campo no 0-0 frente à Croácia), anunciou o adeus ao futebol com apenas 29 anos, justificando a decisão com o facto de já não desfrutar do jogo como antes e ter o desejo de “ver o que estava a acontecer pelo mundo”.
(Masashi Nakayama apontou o primeiro golo do Japão em Mundiais, por sinal, o único dos nipónicos no torneio realizado em França.)
Muitas vezes apelidado de “Beckham japonês”, por ter um alcance mediático que ia muito para além do que fazia dentro das quatro linhas, a verdade é que Nakata desbravou o caminho para dezenas (hoje já centenas) de futebolistas japoneses, que na actualidade se podem encontrar em todos os grandes campeonatos europeus. Nakata… e não só: pode mesmo dizer-se que foi graças à participação japonesa no Mundial 98 que as portas do futebol europeu se abriram de par em par para o atleta nipónico; vendo as coisas por este prisma, se calhar o Japão até se saiu bastante bem da curta mas excitante aventura em França.
*Artigo redigido por Bruno Venâncio, jornalista com passagens pelos jornais “OJOGO”, “Sol” e “I”.